terça-feira, 22 de março de 2011

Auto da Barca do Inferno

Para quem não leu.

Auto da Barca do Inferno é uma complexa alegoria dramática de Gil Vicente, representada pela primeira vez em 1517. É a primeira parte da chamada trilogia das Barcas (sendo que a segunda e a terceira são respectivamente o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca da Glória).

Os especialistas classificam-na como moralidade, mesmo que muitas vezes se aproxime da farsa. Ela proporciona uma amostra do que era a sociedade lisboeta das décadas iniciais do século XVI, embora alguns dos assuntos que cobre sejam pertinentes na atualidade.

Diz-se "Barca do Inferno", porque quase todos os candidatos às duas barcas em cena – a do Inferno, com o seu Diabo, e a da Glória, com o Anjo – seguem na primeira. De facto, contudo, ela é muito mais o auto do julgamento das almas.

Estrutura
O auto não tem uma estrutura definida, não estando dividido em actos ou cenas, por isso para facilitar a sua leitura divide-se o auto em cenas à maneira clássica, de cada vez que entra uma nova personagem.


Resumo da Obra
A peça inicia-se num porto imaginário, onde se encontram as duas barcas, a Barca do Inferno, cuja tripulação é o Diabo e o seu Companheiro, e a Barca da Glória, tendo como tripulação um Anjo na proa.

Apresentam-se a julgamento as seguintes personagens:

um Fidalgo, D. Anrique; 
um Onzeneiro (homem que vivia de emprestar dinheiro a juros muito elevados, um agiota); 
um Sapateiro de nome Joanantão, que parece ser abastado, talvez dono de oficina; 
Joane, um Parvo, tolo; 
um Frade cortesão, Frei Babriel, com a sua "dama" Florença; 
Brísida Vaz, uma alcoviteira (ou proxeneta); 
um Judeu usurário chamado Semifará; 
um Corregedor e um Procurador, altos funcionários da Justiça; 
um Enforcado; 
quatro Cavaleiros que morreram a combater pela fé. 
Cada personagem discute com o Diabo e com o Anjo para qual das barcas entrará. No final, só os Quatro Cavaleiros e o Parvo entram na Barca da Glória (embora este último permaneça toda a ação no cais, numa espécie de Purgatório), todos os outros rumam ao Inferno. O Parvo fica no cais, o que nos transmite a ideia de que era uma pessoa bastante simples e humilde, mas que havia pecado. O principal objectivo pelo qual o fica no cais é para animar a cena e ajudar o Anjo a julgar as restantes personagens, é como que uma 2ª voz de Gil Vicente.


Análise

Sátira Social
Esta obra tem dado margem a leituras muito redutoras, que grosseiramente só nela vêem uma farsa. Mas se Gil Vicente fez a análise impiedosa das moléstias que corroíam a sociedade em que viveu, não foi para se ficar aí, como nas farsas, mas para propor um caminho decidido de transformação em relação ao presente.

Normalmente classificada como uma moralidade, muitas vezes ela aproxima-se da farsa; o que indubitavelmente fornece ao leitor/espectador é uma visão, ainda que parcelar, do que era a sociedade portuguesa do século XVI. Apesar de se intitular Auto da Barca do Inferno, ela é mais o auto do julgamento das almas.


Personagens
As personagens desta obra são divididas em dois grupos: as personagens alegóricas e as personagens – tipo. No primeiro grupo inserem-se o Anjo e o Diabo, representando respectivamente o Bem e o Mal, o Céu e o Inferno. Ao longo de toda a obra estas personagens são como que os «juízes» do julgamento das almas, tendo em conta os seus pecados e vida terrena. No segundo grupo inserem-se todas as restantes personagens do Auto, nomeadamente o Fidalgo, o Onzeneiro, o Sapateiro, o Parvo (Joane), o Frade, a Alcoviteira, o Judeu, o Corregedor e o Procurador e os Quatro Cavaleiros. Todos mantêm as suas características terrestres, o que as individualiza visual e linguisticamente, sendo quase sempre estas características sinal de corrupção.

Fazendo uma análise das personagens, cada uma representa uma classe social, ou uma determinada profissão ou mesmo um credo. À medida que estas personagens vão surgindo vemos que todas trazem elementos simbólicos, que representam a sua vida terrena e demonstram que não têm qualquer arrependimento dos seus pecados. Os elementos simbólicos de cada personagem são:

Fidalgo: manto e pajem que transporta uma cadeira. Estes elementos simbolizam a opressão dos mais fracos, a tirania e a presunção. 

Onzeneiro: bolsão. Este elemento simboliza o apego ao dinheiro, a ambição e a ganância. 

Sapateiro: avental e moldes. Estes elementos simbolizam a exploração interesseira, da classe burguesa comercial. 

Parvo: representa simbolicamente, os menos afortunados de inteligencia. 

Frade: Moça e espada. Estes elementos representam a vida mundana do Clero, e a dissolução dos seus costumes. 

Alcoviteira: moças e os cofres. Estes elementos representam a exploração interesseira dos outros, para seu próprio lucro. 

Judeu: bode. Este elemento simboliza a religião judaica. 

Corregedor e Procurador: processos, vara da Justiça e livros. Estes elementos simbolizam a magistratura. 

Quatro Cavaleiros: cruz de cristo simboliza a fé dos cavaleiros pela religião católica. 

Humor
Surgem ao longo do auto três tipos de cómico: o de carácter, o de situação e o de linguagem. O cômico de carácter é aquele que é demonstrado pela personalidade da personagem, de que é exemplo o Parvo, que devido à sua pobreza de espírito não mede as suas palavras, não podendo ser responsabilizado pelos seus erros. O cómico de situação é o criado à volta de certa situação, de que é bom exemplo a cena do Fidalgo, em que este é gozado pelo Diabo, e o seu orgulho é pisado. Por fim, o cómico de linguagem é aquele que é proferido por certa personagem, de que são bons exemplos as falas do Diabo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário